
Meu coração parou por um instante. O ódio nos olhos dela enquanto me encarava, a raiva em sua voz. Doe me odiava?
Susan se mexeu na cadeira. “Não, Doe, não é tão simples assim. Querida, você precisa entender, Mitchell também... Bom, ele...”
Joe ajudou sua esposa a explicar: “Mitchell estava obcecado por você e sua mãe. Depois que a Susan pediu o divórcio, ele não a deixava em paz.
“Ele aparecia na nossa casa a qualquer hora, muitas vezes de madrugada, batendo nas portas e janelas, querendo conversar.
“Ele a seguia pela cidade e aparecia na sua escola e na padaria da sua mãe. Se recusava a assinar os papéis do divórcio e até veio ao meu trabalho me ameaçar.
“Ele era frequentemente violento e agia de forma estranha. Virou praticamente um perseguidor.”
“Eu nunca quis afastar você do seu pai”, disse Susan. “Mitchell não era o melhor marido ou pai, e eu não o amava mais como antes.
“Mas eu nunca quis que ele sumisse completamente das nossas vidas. Eu queria que você tivesse um relacionamento com ele.
“Cheguei a sugerir que ele se mudasse para perto para que você ainda pudesse vê-lo, e quando ele não quis morar numa cidade cheia de lobisomens, me ofereci para pagar para você voar e ficar com ele em Massachusetts.”
Tentei não rosnar.
Meu lobo e eu nunca gostamos dessa ideia. Eu jamais deixaria minha companheira voar pelo país para passar tempo com um homem que me odiava. A não ser que eu pudesse estar com ela o tempo todo.
“Mas Mitchell estava obcecado em sermos uma família de novo”, explicou Susan.
“Ele achou que se conseguisse sua guarda total, eu teria que ir atrás de vocês e, quem sabe, me apaixonar por ele novamente. Ele sabia que eu nunca desistiria de você, mesmo que um tribunal me obrigasse.”
“Mas ele perdeu a batalha pela custódia”, disse Joe, parecendo tenso.
Deve ter sido difícil para ele falar sobre outro homem tentando tirar sua companheira dele.
“E tomamos a decisão muito difícil de limitar o tempo dele com você. Ele não podia mais entrar nos terrenos da matilha.”
Susan segurou a mão de Doe. “Para o seu próprio bem. Mitchell não estava bem. Ele não se importava se você se machucasse com as nossas discussões, desde que pudesse ficar com você. Conosco.
“Ele odiava que eu tivesse me adaptado tão facilmente ao modo de vida dos lobisomens e decidiu que queria que você continuasse humana como ele. Era egoísta e errado.”
“Mas eu não sou totalmente humana... sou? Eu sou uma... uma...” Doe franziu a testa. “Uma ômega. Isso mesmo. Já ouvi pessoas me chamarem assim. Há anos, eu acho.”
Ela parecia estar se esforçando para lembrar de todas as vezes que havia sido chamada de ômega.
Não era fácil para ela, dava para perceber. Ela parecia frustrada e soltou um suspiro irritado. O bloqueio que Gullius colocou em sua mente estava funcionando, mesmo que estivesse começando a se desgastar.
“Sim”, eu disse suavemente. Me inclinei na cadeira, querendo ficar o mais perto possível dela. “Você é uma ômega.”
“E isso significa que terei filhos poderosos, certo?”
Fiquei surpreso. Não sabia quem tinha dito isso a ela.
Era verdade, no entanto. As ômegas eram conhecidas por terem filhos muito poderosos quando se acasalavam com lobisomens.
Muitos dos maiores e mais importantes alfas e lunas do mundo nasceram de ômegas.
Mas também era uma maneira muito simplista e um tanto problemática de descrever uma ômega. Muita gente achava que esse era o único propósito de uma ômega. Meu pai, por exemplo.
Eu nunca deixaria a Doe pensar assim, e me preocupava que fosse assim que ela escolhesse se descrever agora.
“Sim, entre outras coisas. Mas... onde você ouviu isso?”
Olhei acusadoramente para Joe, mas ele deu de ombros e balançou a cabeça.
“Waylen, o, hum... alfa para quem Robert tentou me vender, me disse. Ele disse que me queria em sua... hum...” – ela tentou encontrar a palavra – “... em sua matilha porque isso lhe traria poder.
“Ele queria que eu me acasalasse com um dos membros de sua matilha para que eu tivesse filhos fortes com eles.” Ela olhou para o colo e resmungou: “Como se eu só servisse pra ter bebês.”
Meus músculos ficaram tensos sem querer, minhas mãos se fechando em punhos ao meu lado.
Até aquele momento, eu tinha sido grato ao Waylen Marshall – um alfa bem conhecido de uma das maiores matilhas de Montana – por me ajudar a encontrar minha companheira quando ela estava desaparecida.
Embora eu tivesse conseguido usar o elo mental para ter uma ideia básica de onde a Doe estava sendo mantida, foi o Waylen quem me deu o endereço exato.
“Confio que você se lembrará de como o ajudei neste momento quando estiver decidindo quem culpar pelo abuso contra sua companheira”, Waylen me disse ao telefone.
“Nunca machucaríamos intencionalmente uma ômega. Quero vê-la em casa em segurança.”
Eu não perguntei como ele sabia onde a Doe estava porque pensei que ele pudesse sentir o cheiro dela. Sua matilha estava perto da localização dela. Mas agora eu sabia que ele estava mancomunado com os caçadores que tentaram tirar a Doe de mim.
Não apenas isso, mas parecia que ele também havia explicado a ela o que significava ser uma ômega, mesmo sabendo que eu deveria fazer isso como seu companheiro.
E, para piorar, ele fez parecer que a única razão pela qual um lobo gostaria de acasalar com uma ômega era por causa de sua capacidade de lhes dar filhotes fortes.
Meu lobo já estava pensando em todas as maneiras de matar Waylen.
Arrancar sua garganta era seu favorito e o método mais eficaz, mas talvez ele escolhesse uma abordagem mais criativa desta vez.
Cortar seu estômago e ver suas entranhas se derramarem, ou…
“Waylen fez um desserviço a você e a todas as outras ômegas ao descrevê-las dessa maneira”, disse Joe com raiva, trazendo minha atenção de volta dos pensamentos violentos da minha fera interior.
Fiquei grato a ele por responder a Doe enquanto eu mais uma vez controlava meu lobo. Como companheiro de uma ômega, ele também se ofendeu pessoalmente com a afirmação de que as ômegas só serviam para ter bebês.
“Ter filhos poderosos não é a única razão pela qual as ômegas são tão importantes para a comunidade dos lobisomens.
“Elas também são naturalmente cuidadoras e pacificadoras. São conhecidas como as mães de uma matilha, mesmo que não estejam acasaladas com o alfa.
“Elas trazem equilíbrio e ajudam a acalmar os lobos ao seu redor – criaturas que são naturalmente governadas por seus instintos em vez da lógica.”
Senti as emoções de Doe crescerem através de nosso vínculo até que ela estivesse novamente prestes a chorar. Estávamos a sobrecarregando. Ela precisava de tempo para pensar.
“Talvez devêssemos fazer uma pausa…”, comecei a dizer.
“É por isso que você me queria?”, Doe me perguntou. “É por isso que você me manteve por perto por tanto tempo sem me dizer que tinha sentimentos por mim? Para ter seus filhos, mas dando a você até o último segundo para se comprometer?”
Essa pergunta quase me fez cair de joelhos. “Não! Não, claro que não. Nem pense nisso. Eu te amo, Doe. Mais do que qualquer coisa neste mundo.
“Não porque você é uma ômega. Nem mesmo porque você é minha companheira; embora eu seja eternamente grato por nosso vínculo nos unir.
“Eu te amo porque você é você. Você é minha doce, carinhosa e linda Doe.”
Estendi a mão para colocar uma mão em sua perna, mas ela se afastou antes que eu pudesse tocá-la. Imediatamente recuei, meu coração preso na garganta. Droga, isso era difícil.
“Então por que você esperou tanto tempo para me dizer que é um lobisomem?” Seu lábio inferior tremeu enquanto ela falava. “Quem se importa com o que Mitchell pensava? Eu tinha o direito de saber.”
Ela não estava entendendo. Eu contei a ela. Houve um tempo em que ela sabia de tudo.
Mas mesmo que tentássemos explicar isso a ela agora, o bloqueio em sua mente a estava confundindo, impedindo-a de entender completamente as informações.
“Ace não teve escolha, Doe”, sua mãe interrompeu, soando tão desesperada quanto eu para fazer Doe se sentir melhor. “Nenhum de nós teve.”
“Quando você tinha sete anos”, Joe explicou, “Mitchell levou você a um bruxo sem nosso conhecimento-”
“Espera aí. Um bruxo?”, Doe interrompeu. “Tipo um... bruxo? Você tá de brincadeira, né?”
“Não, não estou”, disse Joe. “Seu pai biológico levou você para ver um bruxo, um homem com habilidades mágicas que pode fazer feitiços e poções.
“É contra nossas leis que bruxos usem seus poderes em humanos – sem falar que é muito perigoso –, mas Mitchell encontrou um que topou fazer isso. Ele colocou o que chamamos de um 'bloqueio' na sua mente.”
Doe assentiu e se sentou um pouco. Ela já tinha ouvido essa palavra antes.
“O bloqueio barrou quaisquer memórias relacionadas a lobisomens”, Joe continuou. “Também impede que você se lembre de qualquer nova informação sobre lobos.
“Então, se alguém tentasse falar com você, ou se você ouvisse ou visse algo, simplesmente esqueceria tudo em poucos minutos. Ou não entenderia.”
“Então...,” Doe começou, parecendo confusa enquanto pensava, “é por isso que não sei mais sobre lobisomens? Esqueci tudo por causa do... do bloqueio?”
“Sim”, confirmei. “Não dependia de nós. Queríamos que você soubesse de tudo. Eu queria que você soubesse de tudo. Você tem que acreditar nisso.”
Os olhos dela percorreram meu rosto como se tentasse descobrir se eu estava dizendo a verdade. Se eu estava sendo honesto.
“Você queria me contar?”, ela perguntou, sua voz instável. “Você não estava tentando esconder seu lobo de mim?”
Eu odiava que ela precisasse fazer essa pergunta.
“Claro que não. Você é o amor da minha vida, Doe. Quero que você saiba tudo sobre mim. Eu queria que você soubesse desde o momento em que te conheci. Me doía manter uma parte tão grande da minha vida escondida de você.”
“É verdade”, disse Susan. “Ace tem lutado para que você saiba a verdade desde o início. Ele odiou mentir para você todos esses anos. Todos nós odiamos.”
Doe parecia confusa. “Mas então... se o bloqueio bloqueia todas as memórias relacionadas a lobisomens, por que consigo entender tudo isso agora?”
Seus olhos se arregalaram. “Já tivemos essa conversa antes? Vou esquecer tudo isso em alguns minutos?”
“Não”, eu disse. “Não, você não vai esquecer isso. Sua memória tem melhorado nos últimos meses. Tenho certeza que você notou.”
Doe relaxou de volta na cama, cruzando os braços sobre o peito. “Notei como tenho ficado confusa”, ela disse com raiva. “Notei todos mantendo segredos de mim.”
“Isso é porque você está começando a se lembrar das coisas. Você está conectando as peças do quebra-cabeça.”
Me inclinei na cadeira, precisando ficar mais perto dela. “O bloqueio está se desgastando. E quando você fizer dezoito anos, ele deixará de funcionar completamente.”
“Dezoito...”, Doe disse baixinho. “É por isso que você disse que não podia me contar a verdade até eu fazer dezoito anos. Porque eu não seria capaz de lembrar até depois do meu aniversário.”
“Isso mesmo”, confirmei, sentindo como se um peso enorme tivesse sido tirado dos meus ombros. “Pensei em tentar mais cedo, mas mesmo com o quanto você estava se lembrando, o bloqueio ainda estava barrando muita coisa.
“Você estava tão confusa e chateada e... eu não queria piorar as coisas.”
Doe fechou os olhos e levou uma mão trêmula à cabeça, parecendo estar com dor. Droga, sua cabeça estava doendo. Através do nosso vínculo de companheiro, sua dor aguda parecia ser minha também.
“Isso era outra coisa que eu queria evitar”, eu disse com uma profunda carranca. “Eu não queria que você sentisse dor. Como está sentindo agora. Quer fazer uma pausa?”
“Acho que pode ser uma boa ideia”, Susan concordou.
Doe tirou a mão da cabeça e se ajeitou na cama. “Não. Tô bem. É só uma das minhas dores de cabeça. Tá especialmente ruim em cima da concussão, mas vou ficar bem.
“Quero continuar conversando. Não quero esperar mais pra saber a verdade.”
Joe suspirou e passou a mão pelo rosto. “Bom, então acho que é hora de você saber que suas dores de cabeça não são dores de cabeça normais.”
Doe pareceu confusa. “Como assim?”
“É o bloqueio”, expliquei com cuidado. “A dor que você tá sentindo agora é na verdade o bloqueio fazendo seu trabalho e apagando suas memórias.”
Isso fez a Doe parar, e dava pra perceber que ela tava tendo dificuldade pra entender.
“Peraí, então cada dor de cabeça forte que tive nos últimos anos – toda a dor, as horas no escuro, todos os remédios que tomei – foi porque alguém falou sobre lobisomens perto de mim?”
Olhei nervosamente para os seus pais. “Basicamente, sim. Sinto muito, Doe. Sei que isso é difícil de ouvir-”
Doe me interrompeu, claramente não querendo minha pena. “Mas eu só comecei a ter minhas dores de cabeça aos quinze anos. Não até depois do acidente de carro.”
Ela me encarou com os olhos semicerrados. “Mas tô começando a achar que não teve acidente de carro nenhum, né?”
“Não. Não teve”, respondi.
“Então, o que aconteceu de verdade?”
Soltei um suspiro trêmulo. Essa era a parte que eu mais temia. “Foi tudo culpa minha.”