Unidos pelo Destino - Capa do livro

Unidos pelo Destino

O Despertar: Parte 2

Por já ter presenciado o ritual muitas vezes, lembro que em certo momento eles tiram os cobertores dos lobos iniciados, deitando-os para que eles possam ser abençoados pela lua cheia.

Logicamente, uma parte do meu cérebro está me dizendo que é isso que está acontecendo. É quase como se eu não estivesse mais presa ao meu corpo, e uma sensação de calor percorre a minha bochecha.

Uma voz rouca vem até mim através da bruma.

"Vai doer… Mal posso esperar pra assistir, rejeitada. Ou talvez eu possa tirar vantagem de você assim mesmo. Finalmente vou conseguir o que quero."

A princípio não reconheço a voz, mas depois de alguns segundos o meu instinto me diz que é o Damon, um garoto do grupo do Colton que tentou me beijar há um ano.

Ele me encurralou no corredor da escola, me empurrou contra a parede e tentou me forçar a beijá-lo enquanto enfiava a mão por baixo do meu vestido.

Eu resisti, deixando-o com um belo arranhão naquele rosto arrogante, e ele começou a me provocar desde então. Não que eu o tenha machucado de verdade, os lobos se curam rápido, mas deixei uma marca no orgulho dele, feri o seu ego.

Não consigo reagir, e quando uma sensação quente e invasiva desce pelo meu ombro, só consigo me contorcer, querendo tirar as mãos dele de mim.

Ele não é tão burro assim, e com todos olhando para nós, ele me deixa sozinha enquanto tento lutar para voltar a mim.

De repente, tenho medo de que ele seja a pessoa designada a cuidar de mim depois que o ritual terminar, responsável por me levar de volta até a minha pilha de roupas, pela sombra oculta da beira do penhasco.

Quem sabe o que ele faria nessa situação? Não me lembro se a transformação completa tira você dessa sensação de brisa induzida pelas drogas quando termina ou não.

Não consigo mais pensar quando uma luz forte atinge toda a superfície do meu corpo, quase como se um maçarico tivesse sido ligado, e eu instintivamente tenho um espasmo, ficando em uma posição arqueada no chão.

Cada centímetro da minha pele está pegando fogo e formando bolhas enormes, é uma verdadeira tortura, como se tivessem tacado fogo em mim, eu tento me mexer e arranho o chão abaixo de mim, ofegando com o esforço.

Quebro as unhas no terreno acidentado enquanto luto em busca de algum alívio, mas não consigo fazer nada além de gritar de dor, me contorcer de agonia, enquanto uma sensação intensa arranca a minha pele.

Minha voz fica mais profunda, áspera e rouca, e os gritos se transformam em rosnados, minha garganta quase explode em chamas.

Por um segundo, é como se eu estivesse sendo estrangulada. Atacada. Meu corpo está sendo devastado, torcido, quebrado e morto, mas não por outro lobo... isso é a verdadeira transformação.

É muito pior do que eu imaginava.

Tremores, convulsões e uma agonia devastadora me rasgam por dentro, me fazendo rolar para tentar aliviar a dor enquanto sujeira, pedras e poeira raspam a minha carne e queimam ainda mais.

Eu choramingo e gemo, mas isso não alivia em nada a tortura do meu corpo se triturando e se despedaçando.

Eu grito, imploro para a minha mãe me salvar, imploro para que o destino pare com isso, quebrando os dedos e arrancando o que resta da minha pele nas pontas afiadas das pedras que estão embaixo de mim.

Ninguém poderia me preparar para esse momento, e estou sendo virada do avesso enquanto sou assada lentamente nas brasas.

Não consigo respirar, não consigo mais gritar e, silenciosamente, me contorço e me debato enquanto sou consumida pelo inferno.

Nossos ruídos são abafados pelas batidas, cantos e palmas dos membros das matilhas, trovejando pelo chão e reverberando no meu corpo quebrado e esmagado.

Eles dão lugar a uivos quando a lua atinge o seu pico e nos encorajam a fazer a transição final para nos tornarmos como eles, que estão obedecendo ordens estritas de que ninguém além dos iniciados se transformem essa noite, para que a cerimônia não seja interrompida.

Somente os lobos da cerimônia podem se transformar hoje. Apenas o nosso sangue será derramado enquanto a nossa forma humana estiver sendo destruída para construir algo melhor.

Eu quero morrer.

A dor é insuportável, me leva à beira da loucura, e realmente parece que o meu corpo humano está sendo torturado.

Cada osso do meu corpo se quebra e se transforma como se estivesse sendo feito manualmente, um de cada vez. Minha carne se solta e se afasta dos ossos.

Estou molhada, um calor jorra enquanto o sangue escorre das feridas infernais que parecem durar para sempre, me cobrindo com um calor quente e pegajoso, me sufocando e deixando um cheiro metálico por toda parte.

Não sei dizer o que é suor, sangue ou talvez outro tipo de fluido. Eu uivo e me esforço com todas as minhas forças, então viro o meu rosto para cima e suspiro de alívio enquanto os meus pulmões inalam e sinto que finalmente respiro.

Mal consigo me segurar, chegando ao auge da dor, a minha mente está à beira do colapso, e os restos da sanidade oscilam.

E então… acaba.

Tudo para.

Como tomar uma bebida gelada em um dia de verão, uma calmaria instantânea me atinge intensamente à medida que os meu barulhos se tornam silenciosos, minhas queimaduras esfriam e meu corpo volta a se arranjar.

Eu paro de lutar contra o meu corpo. Estou ciente que o fim de tudo isso está próximo e do silêncio misterioso que me rodeia do nada.

O silêncio anormal, nebuloso e embaçado me incomoda enquanto a minha cabeça gira, e eu busco algum senso de realidade. Recupero o fôlego, respirando ar fresco e me acalmando enquanto a bruma se dissipa. Minha visão retorna um pouco.

Tento me levantar, ficar reta, mas sinto que eu estou diferente, e tropeço para o lado com uma sensação desorientada.

Fico de joelhos, embora não saiba como cheguei a esse ponto.

Não consigo ficar de pé ou me levantar normalmente porque tudo parece estranho, pisco e balanço a cabeça para clarear os olhos o suficiente.

Eu pisco, meus olhos lacrimejam quando finalmente consigo enxergar e vejo formas e sombras que então se tornam cada vez mais nítidas.

Estou confusa, mas há uma calma tomando conta de mim, uma sensação de serenidade com os sentidos aguçados.

Olhando para baixo, vejo patas que me assustam a princípio. Eu suspiro e percebo que são as minhas patas, onde as minhas mãos deveriam estar, apoiadas no chão.

Eles são patas grandes, com garras, mas bem fortes, maiores do que eu imaginava. Levanto uma e sacudo, quase como se precisasse me convencer de que posso controlá-la.

Está realmente conectada ao meu corpo. Minhas pernas são fortes, com pelos grossos cinza-prateados subindo pelo meu peito musculoso. Também tenho no peito uma mancha da mais pura cor branca.

Eu olho para ela, me inclino para trás e abaixo o meu queixo para acompanhá-la até não conseguir mais ver.

Lembro muito pouco da minha mãe na forma de loba, mas sei que puxei isso dela. Ela era branca e o meu pai era prateado, mas é raro combinar os dois pelos dessa forma.

A maioria dos lobos é marrom ou cinza... branco é uma mutação raríssima, e minha mãe costumava tentar se esconder porque isso chamava a atenção.

Cambaleio sobre as minhas pernas estranhas e caio no chão, batendo com tudo ao colidir com uma pedra.

Balanço a cabeça, o peso desconhecido me puxa de um lado para o outro. Ainda não tenho controle total dos meus membros ou movimentos, mas tenho consciência de que essa loba é muito maior que o meu corpo humano.

De repente, percebo que a cena ao meu redor volta ao foco e ainda estamos sendo observados. Fico sóbria rapidamente enquanto o meu novo metabolismo expulsa as últimas drogas do meu corpo e limpa o meu sangue.

A atmosfera está carregada, e lobos recém-transformados, em tons de cinza e marrom, me cercam, embora eu seja a única loba com manchas brancas.

Me viro enquanto os cantos do xamã atraem os meus olhos de volta para ele e tropeço tentado me endireitar e me levantar.

É difícil usar as mãos como patas dianteiras, e instintivamente recuo demais sobre as patas traseiras, perco o equilíbrio e volto para a frente para corrigir antes de cair de bruços.

Caio no chão mais uma vez e fico com a cara na poeira, e então ouço um estalo na mandíbula.

"Vai ficando mais fácil com o tempo. Tenta levantar. Nas quatro patas de uma vez." A voz acima de mim chama a minha atenção.

Eu recuo quando percebo que o Colton Santo está parado bem ao meu lado, observando enquanto eu pago o maior mico, caindo sem parar por causa das minhas novas pernas. Não sei se estou chocada por ele ter falado comigo ou desconfiada.

Nunca confiei nele e me pergunto quando ele chegou aqui, tão perto de mim.

Evito olhar diretamente para ele, mantendo os meus olhos afastados, tentando lidar com esse corpo estranho e me concentrando em aprender a usá-lo.

Tudo o que posso fazer é choramingar, percebendo que não consigo formar palavras quando estou na forma de lobo.

Não temos cordas vocais como os humanos. Os lobos da mesma matilha têm um link mental, então podem se comunicar sem falar.

Também é possível se conectar mentalmente quando outro lobo estiver perto o suficiente, mesmo que ele não seja da sua matilha, desde que ele esteja disposto a te ouvir.

"Que estranho" ~,Eu tento me conectar com ele, me sentindo assustada por essa habilidade nova e quase natural que eu não tinha antes.

Estou impressionada com tudo isso e não tenho certeza se ainda estou drogada ou se esta nova maneira surreal de viver faz parte dos sentidos dos lobos.

As coisas nos afetam de maneira diferente dos humanos, e talvez eu tenha que me adaptar a essa desorientação.

"Sim, bom, supera. Você tem que aprender rápido" , ~ele me responde, e percebo uma familiaridade rouca com sua voz dentro da minha cabeça que causa sensações estranhas no meu estômago.

Não é uma resposta educada, e o tom me diz que ele não quer ter nenhum tipo de comunicação comigo, muito menos através de uma ligação mental.

Não faço parte da matilha dele nem estou no mesmo nível que ele. É desrespeitoso responder.

Ele caminha em direção ao pai para demonstrar melhor o seu ponto de vista, e eu me abaixo para tentar lidar com o meu corpo novo.

Sou pesada demais, não sei como guiar o meu corpo de loba depois de passar a vida andando sobre duas pernas. Devo pesar quatro vezes mais que o meu peso de humana, embora o tamanho das minhas patas sugira, talvez, ainda mais.

"A transformação não vai durar pra sempre... essa estranheza é passageira, por ser a primeira vez. Vocês vão despertar quando o ritual acabar e os seus caminhos vão levar vocês aos seus destinos. Prestem atenção e fiquem alertas.

Vocês estão, agora, do outro lado." O xamã afirma em voz alta, e sua voz ecoa pela montanha como uma canção profética.

Já ouvi isso tantas vezes, mas dessa vez finalmente significa algo para mim.

Levanto novamente com as pernas inseguras, lentamente, como se eu tivesse os membros de um recém-nascido, e levanto a cabeça.

Ao mesmo tempo, todos os iniciados esticamos o pescoço, erguemos o nariz para o céu e uivamos para a lua pela primeira vez nas nossas vidas, como uma matilha unida.

Não importa quem nós somos, de onde viemos, a nossa linhagem ou o nosso passado, nosso chamado é cheio de significado, unido em uma canção que completa a nossa transformação.

O som ecoa ao nosso redor, através de nós, e é acompanhado por centenas de pessoas que assistem até enchermos o céu noturno com um zumbido baixo e misterioso que reverbera pelas montanhas.

Parece estranho no começo.

Minha garganta vibra; dói e raspa as minhas cordas vocais, mas quando a minha barriga se esvazia, todo o ar sai, e o uivo mais longo sai com tudo de dentro de mim até arranhar a minha garganta e me deixar sem fôlego.

Eu me sinto viva. Como se eu estivesse prendendo a respiração e esperando por isso durante toda a minha vida. Acho que, no fim, essa é a verdade. Foi para isso que nasci e com o despertar, vem a liberdade.

Próximo capítulo
Classificado com 4.4 de 5 na App Store
82.5K Ratings
Galatea logo

Livros ilimitados, experiências imersivas.

Facebook do GalateaInstagram do GalateaTikTok do Galatea